A dona de casa, o interbancário e as finanças públicas

A recuperação da economia e dos níveis de emprego devem ser perseguidos obstinadamente através da recuperação dos investimentos públicos e de gastos estratégicos do Governo Federal. Dinheiro não falta!

Por: Luiz Alberto Vieira Filho

As finanças públicas teriam grande semelhança com as contas de uma dona de casa conforme o clichê repetido ad nauseam pelos economistas vulgares. O Estado, assim como uma dona de casa, caso gaste mais do que ganha, em algum momento acabaria quebrando.

Com base neste simplório raciocínio, o governo brasileiro impôs importantes cortes orçamentáriosaumentou em mais de 60% as tarifas de energia elétricaacabou com programas públicos como o “Ciência sem Fronteiras e aprovou uma emenda constitucional congelando as despesas públicas por 20 anos.

O mais assustador dessa história é que a concepção machista de uma família patriarcal está longe de ser o ponto mais arcaico dessa analogia. A ideia de uma família na qual o homem provê os recursos financeiros, lê jornal e se delicia na garçonnière com as amantes, enquanto a mulher cuida dos filhos, da casa e faz as compras no supermercado está longe de ser a parte temporalmente mais defasada.

O fato é que desde que os Medici aplicaram a matemática de Fibonacci às letras de câmbio para fugir das penas contra a usura, o sistema de crédito registrou brutal evolução.

A concessão de crédito evoluiu do empréstimo com recursos próprios para a intermediação de recursos de terceiros e, finalmente, para empréstimos sem contrapartida alguma, ou melhor, com apenas parte dela. Assim, o sistema bancário concede crédito mesmo que tenha apenas parte desses recursos. Somente uma fração dos depósitos bancários de qualquer correntista é coberto por reservas bancárias e dinheiro nos cofres dos bancos. Mas como os bancos fazem quando os clientes decidem sacar o dinheiro?

A primeira solução é que outro cliente deposite o valor sacado. No entanto, isso não é sempre possível. Por isso, os bancos costumam emprestar dinheiro ou reservas bancárias de outros bancos para cobrir esses saques acima dos recursos disponíveis, esse é o mercado interbancário. Uma terceira alternativa é recorrer a empréstimos do Banco Central, mas que são penalizados com taxas acima das praticadas pelo mercado interbancário.

As operações de empréstimos entre os bancos costumam ter como garantia títulos da dívida pública e o custo dessas operações é a taxa Selic. O que um banco empresta para outro são as reservas bancárias, que são depósitos que os bancos mantêm no Banco Central.

Uma das alegrias mais prosaicas das antigas donas de casa era achar uma nota de   1:000$000 réis no bolso da calça, assim como as modernas médicas neurologistas e os advogados ficam felizes de achar uma nota de cem reais em seus bolsos. Isto sugere que a gestão de liquidez das famílias, que jamais ofertam suas sobras de dinheiro no mercado interbancário, era e é muito diferente da gestão praticada pelos bancos.

Nos bancos toda sobra de caixa (reservas bancárias) é ofertada diariamente no mercado interbancário, inclusive os depósitos que as donas de casas ou qualquer outra cidadã ou cidadão mantém na instituição. A maior parte do dinheiro não “dorme” uma noite sequer no banco. A instituição que ficou sem caixa diante dos saques dos correntistas, uma vez que tinha emprestado a terceiros os recursos dos clientes, empresta reservas bancárias daquelas que estão com sobras de caixa.

E qual a origem dessas reservas bancárias?

Existem apenas duas origens possíveis das reservas bancárias: as despesas pagas pelo Tesouro Nacional e a compra de ativos pelo Banco Central, especialmente de títulos públicos emitidos pelo Tesouro e de moedas estrangeiras. Em sentido inverso, a cobrança de tributos pela Receita Federal, a emissão de títulos da dívida pública pela STN e a venda de ativos pelo Banco Central reduzem a quantidade de reservas bancárias.

O importante é que quando o Tesouro faz um pagamento, os valores são debitados da Conta Única mantida pela STN no Banco Central e creditados nas reservas bancárias do banco comercial, no qual o destinatário do dinheiro mantém sua conta corrente. Mesmo que esse dinheiro seja de propriedade de um cliente, o banco tentará emprestar esse dinheiro no mercado interbancário para outro banco. Como haverá um volume maior de reservas bancárias disponíveis para empréstimo dos bancos deficitários, os juros tenderão a cair, ficando abaixo da meta Selic determinada pelo Banco Central.

Essa massa de recursos financeiros que surgiu pelo pagamento de despesas pelo Tesouro Nacional ficará vagando em busca de oportunidades de aplicações rentáveis. No entanto, as únicas possibilidades de enxugamento do excesso de reservas bancárias do sistema como um todo são as vendas de títulos públicos pelo Tesouro Nacional ou pelo Banco Central. Quaisquer outras transações pelos demais agentes da economia não reduzirá o excesso global de reservas bancárias. Assim, o pagamento de despesas públicas pelo Tesouro Nacional gera a demanda pelos títulos públicos para o seu financiamento, o que pode ser chamado de “Lei de Say do Financiamento da Despesa Pública”.

Caso se insista em analogias domésticas para as finanças públicas, é como se a dona de casa pudesse pagar suas despesas com o amor que sente pelos filhos, algo gratuito e de emissão infinita, pouco importando as juras aos filhos de que serão amados por toda a vida. A preocupação não é faltar amor no futuro. Talvez a única preocupação seja que tanto amor possa mimar demais as crianças.

Não é por acaso que os saldos da Conta Única cresceram de maneira praticamente ininterrupta nos últimos 20 anos, contrariando a crença de que crises fiscais teriam implicado dificuldade de caixa para o Tesouro.

 

Tabela 1: Saldo da Conta Única do Tesouro Nacional (R$ mil)

  Conta Única do Tesouro Nacional
1994 12.094.252
1995 22.239.182
1996 25.143.391
1997 41.135.318
1998 50.402.341
1999 75.779.217
2000 88.380.288
2001 82.205.875
2002 88.526.786
2003 120.189.562
2004 158.231.716
2005 208.476.268
2006 226.047.319
2007 275.843.164
2008 255.216.723
2009 406.354.420
2010 404.516.398
2011 475.622.276
2012 620.401.291
2013 655.965.327
2014 605.920.552
2015 881.932.081
2016 1.039.821.680
Fonte: Demonstrações Financeiras do Banco Central

A “Lei de Say do Financiamento da Despesa Pública” possui implicações poderosas. A primeira é que um país com moeda soberana não quebra em moeda doméstica. A segunda é que a política fiscal, que é a gestão das receitas e despesas do Governo Federal, deve buscar ativamente atingir níveis de emprego e inflação considerados adequados.

Numa conjuntura com a maior recessão da história e com a decomposição social e política do Brasil, o caminho a seguir é radicalmente distinto daquele foi trilhado nos últimos 3 anos, marcados por rodadas sucessivas de ineficientes arrochos fiscais. A recuperação da economia e dos níveis de emprego devem ser perseguidos obstinadamente através da recuperação dos investimentos públicos e de gastos estratégicos do Governo Federal. Dinheiro não falta!

Este artigo é uma versão resumida e simplificada de aspectos do trabalho que será apresentado no X Encontro da Associação Keynesiana Brasileira: “Financiamento do setor público e “crise fiscal” na recessão de 2015 e 2016: uma abordagem neocartalista”.

Acesse a íntegra do artigo abaixo.